Crônica - “Anna O.” e a limpeza da chaminé (do meu fogão a lenha do sítio)

 

Anna O.” e a limpeza da chaminé (do meu fogão a lenha do sítio)

Anna O., para quem não conhece, foi a paciente de Freud (há controvérsias), que muitíssimo contribuiu, na condição de paciente, para a criação do método psicanalítico, especialmente, no que se refere a “cura pela fala”, o que Anna O. também nomeava como “limpeza da chaminé”. Numa sessão, com o então Doutor Freud, ela teria pedido para que ele ficasse quieto e só ouvisse, a fim de que ela pudesse falar e assim, colocar as coisas/questões para fora “e ir limpando a sua chaminé”. Claro que, tão importante quanto falar foi lembrar, buscar nas memórias “afetivas” as possíveis explicações para o sofrimento psíquico que estava sentindo.

Isso posto/apresentado, puxo a minha experiência de limpeza da chaminé - literalmente falando - a fim de fomentar uma analogia possível.

No sítio, tem um fogão a lenha (marca Walter. Curiosamente, Walter é o nome do meu antepassado paterno, que embarcou na Alemanha em direção ao Brasil, mas, faleceu no trajeto) e como o frio está chegando, animei-me a fazer fogo nele. Entretanto, essa tarefa não foi nada fácil, apesar de tudo estar, aparentemente, em ordem (?). Aliás, para facilitar a lida - ao menos tentei facilitar – peguei brasas da churrasqueira e coloquei no fogão acrescentando um pedaço de lenha. Em questão de minutos, a casa toda estava tomada por fumaça. Confesso que, depois de abrir todas as janelas e portas disponíveis, me deu vontade de jogar um balde de água naquele fogão e acabar com tudo (morte?). Mas, confesso também, que sou um pouco teimoso. Hehe

Passei a investigar as possíveis causas daquela fumaceira: a lenha estava seca; o fogão tinha funcionado razoavelmente bem, no final de semana anterior; com o fogão aberto o fogo ressurgia; e a chaminé estava bem encaixada e no lugar, com uma altura adequada. Então, o insight, ou melhor, LEMBREI (memórias?) que numa outra ocasião/situação semelhante, a causa fora um ninho de passarinho na chaminé. Descobri isso um bom tempo depois, praticamente meio ano depois do ocorrido, quando um novo inverno começava e eu resolvi trocar todos o cano da chaminé, pois neste novo inverno, eu não pretendia ficar sofrendo com a fumaça dentro de casa. Quando tirei a terceira parte do cano, já um pouco corroído pelo tempo, notei imediatamente que havia um ninho de passarinho em seu interior e assim, estava explicada/esclarecida a causa da fumaça dentro de casa e da dificuldade em acender o fogo no fogão a lenha. Convém informar que, como a chaminé é um cano liso de inox de 20 cm de diâmetro, com um acesso difícil, essa façanha não é nada comum (?), apesar de já ter sido a segunda vez que isso aconteceu (repetição ?).

Retomada esta memória, dirigi-me ao cano da chaminé. Ao colocar a mão no cano, que é de inox, já percebi que o cano estava frio, logo, não tinha subido fumaça por ele, pois a passagem da fumaça quente o deixa intocável. Comecei a dar batidas leves no cano e ele parecia limpo, mas, o fato dele estar frio me deixou intrigado, o que me levou a dar continuidade a investigação. Comecei a desmontar o cano, que é formado por vários pedaços de cano que são encaixados um no outro, até atingir-se uma altura adequada, para que o vento/a corrente de ar favoreça a saída da fumaça. Quando tirei o primeiro pedaço de cano, começando por baixo, pois não estava a fim de subir no telhado para começar por cima, a fumaça já começou a sair, quase que normalmente, pelo buraco na parede da casa, por onde saia a chaminé. Sendo assim, ficou demonstrado, que o problema estava na chaminé. Segui desmontando o cano e eis que, no último pedaço – o quarto pedaço – continha um ninho de marimbondos e um ninho de passarinhos, ou seja, a difícil proeza de se fazer algo dentro da chaminé inox, num cano liso, de uns quatro metros de altura, se repetiu.

Bastou tirar os ninhos, que já haviam sido abandonados, que o fogão retomou a sua “vida” de fogão a lenha. Voltou a ser simples e fácil iniciar um fogo nele, bastando algumas grimpas de pinheiro, alguns gravetos e um palito de fósforo. Lembro que antes, passava meia hora na lida do fogo - quando conseguia - e quase precisava usar uma máscara por causa da fumaceira pela casa.

Agora, é só usufruir: cozinhar no fogão a lenha, ter sempre água quente em cima do fogão e curtir o ambiente quentinho da casa. Claro que é preciso puxar lenha lascada para alimentar o fogo, mas num sítio, isso é tranquilo.

Chaminés limpas, a da Anna O. e a minha, vamos a analogia possível com a nossa condição psíquica, ou, como costumo definir, com a nossa condição afetiva.

Curiosamente, o fogão a lenha, aquece o ambiente e possibilita o preparo do nosso alimento, assim como a afetividade nos aquece e nos nutre/faz crescer, sobretudo, quando a nossa condição afetiva nos desafia através do sofrimento.

Inclusive, o que fez a Anna O. buscar ajuda, primeiro do Breuer e depois do Freud, foi o sofrimento psíquico que ela sentia, desencadeado pelo adoecimento do pai, pelo que consta. Sofrimento que desencadeou vários outros sintomas físicos, entretanto, ao hipnotizá-la, Breuer imediatamente percebeu que a causa não era física, mas, de outra ordem, assim sendo, a intervenção também precisava alcançar a causa efetiva dos problemas físicos que ela manifestava. Então, o “adoecimento” dela localizava-se em outra condição, que não a orgânica/física. E isso intrigava veementemente a Breuer e a Freud, que também eram médicos.

Comparando com a limpeza da chaminé, do meu fogão a lenha no sítio, parece-me ser possível dizer que o problema também não estava no fogão em si, muito menos na fumaça que tomava conta da casa (aliás, a fumaça é comparável aos sintomas físicos da Anna O.), mas, em outra parte estrutural, independente do fogão, mas, indispensável para o seu funcionamento, ou melhor, sem chaminé um fogão a lenha não atenderá ao fim pelo qual foi construído, adquirido e instalado.

E foi falando, ou melhor, na verdade foi LEMBRANDO (retomando memórias, através da fala com o Breuer e o Freud) de “vivências feitas/sentidas” que Anna O. e eu chegamos a causa efetiva do problema: ela conseguiu reelaborar algumas vivências traumáticas, ressignificando-as afetivamente, e eu consegui lembrar do caso anterior do entupimento da chaminé. Claro que o meu caso é bastante simplório perto dos sofrimentos e/ou da angústia de vida/existencial pela qual a Anna O. passou. Sei disso, porque também já passei por uma angústia existencial e posso garantir que, lidar com um fogão a lenha, que não puxa, como se diz no popular, é fichinha de resolver.

Outra analogia válida, me parece, é em relação a fumaça e aos sintomas, ou melhor, ambos eram apenas o “efeito” e não a causa do problema. A fumaceira, dentro de casa, apontava para algum problema naquela estrutura, que já funcionou bem inúmeras vezes, porém, no momento, não estava querendo funcionar. Parece que a estrutura psíquica da Anna O., até os 21 anos, também “funcionava” (se funcionava bem já é outra questão), mas, quando o pai adoeceu, isso a “afetou” de tal forma que começou a bloquear o fluxo vital dela/nela (quem sabe o fluxo afetivo?), resultando em vários sintomas físicos como: dificuldade para comer, paralisia no braço, afasia, visão embaçada, dentre outros. A solução não estava em preparar comida diferente e melhor, nem em fazer fisioterapia, ou ir num fonoaudiólogo ou num oftalmologista. Era preciso buscar a causa efetiva daqueles problemas, assim como me foi necessário buscar a causa efetiva da fumaça dentro de casa, aliás, como já relatado, uma causa bastante atípica, já que a chaminé é um lugar improvável para ninho de marimbondo e menos ainda, ninho de passarinho.

Em relação a Anna O. eu arriscaria dizer, em minha modéstia observação, que o fluxo afetivo dela era fortemente dependente da relação dela com o pai, e este, uma vez adoecido e acamado, não só interrompeu aquele fluxo como também, fez ela perceber uma estrutura afetiva infantil, completamente dependente do pai. Aliás, até parece ser possível concluir que, o próprio Breuer veio a ocupar, mais tarde, este lugar do pai, afinal, foram mais de dois anos de “tratamento” com ele, ou seja, de convivência entre eles e isso oportunizou a superação de vários sintomas da Anna O.. Inclusive, não é nenhuma novidade, a suspeita de ter havido um envolvimento afetivo maior entre eles, que quase saiu do controle. Isso teria levado Breuer a viajar com a família e ficar sem atender Anna O. por um bom tempo, e mais adiante, ter feito Breuer a repassar o caso para o seu amigo Freud. A questão que me salta: será que Breuer fez “o fogo afetivo” de Anna O. voltar a queimar novamente? Hehehe

Entretanto, se assim foi, será que ela não transferiu, apenas, a dependência afetiva? Tudo bem que um fogão a lenha também precisa ser “alimentado” com lenha, por um terceiro, e, mesmo que a estrutura afetiva de cada pessoa se desenvolve no relacionamento com terceiros, me parece que, criar uma exclusiva dependência afetiva de terceiros revela um estado afetivo ainda infantil, período em que somos grandemente dependentes. Dependência que vai sendo superada de formas diferentes, ou seja, para mim, não, necessariamente, nos desenvolvemos da mesma forma em nossas três dimensões, quais sejam, a física, a afetiva e a mental.

Assim, uma coisa é a nossa forte dependência física na infância, outra coisa é o nosso desenvolvimento afetivo e outra ainda, o mental. Evidente que o ideal seria o desenvolvimento integral do ser humano, entretanto, poucos adultos, sobretudo, pais, têm condições para trilhar tal caminho formativo com os filhos. Pior, lamento informar, mas, em muitos casos, os próprios filhos são gerados devido as carências afetivas dos próprios pais, isto é, o desenvolvimento afetivo dos pais é tão precário/infantil ainda, que o filho passa a desempenhar o papel que o pai da Anna O. desempenha para ela. Enfim, sendo mais específico e direto: como os filhos podem se desenvolver saudavelmente se os próprios pais ainda são dependentes afetivos? Será que muitos pais não transformam os filhos em meros objetos das carências pessoais, os usando para dar um sentido à própria vida e/ou para ter um amparo na velhice? Aliás, se há um pecado original, deveria ser bem este: ter filhos para usá-los devido às próprias carências afetivas. Nesse círculo vicioso, se ele existe mesmo, a humanidade dificilmente conseguirá evoluir.

Inclusive, será que o pai da Anna O. não fez isso? A paparicou e mimou tanto que não a deixou crescer, sentir “o princípio da realidade” para não correr o risco de “perdê-la”? Em vez de ajudá-la a amadurecer afetivamente a manteve na dependência dele, afinal, assim ele próprio se sentia útil, importante e necessário?

O fogão a lenha do sítio, assim como qualquer fogão a lenha, sempre será dependente de terceiros, porém, este não me parece ser o caso do ser humano. Aliás, penso que, apenas um ser humano independente afetivamente, logo, maduro na autoestima, pode deixar as outras pessoas livres também, não as usar como objetos para satisfazer as próprias carências e quiçá ajudá-las no desenvolvimento pessoal, afinal, ninguém se desenvolverá afetiva, mental e fisicamente por você (nem tua esposa/ou marido, nem teus filhos, nem mesmo a tua sogra pode fazer isso por você). Este desenvolvimento cabe a cada um, é a missão de vida de cada qual, entretanto, é sempre um desenvolvimento em interação com outros e com o mundo.

Quando um fogão a lenha só precisa ser alimentado com lenha, isso é perfeito, pois o fogão está desempenhando seu fim. Do contrário, quando uma pessoa não precisa ser alimentada afetivamente por terceiros, isso também é maravilhoso, pois só assim, quanto mais perto dessa independência afetiva, mais cada pessoa pode potencializar-se enquanto fim em si mesma e deixar - e/ou ajudar - que as demais pessoas também percorram o próprio caminho do autoconhecimento e da construção da autoestima.

Que bom que Anna O. conseguiu fazer esse processo pessoal.

Que bom que eu consegui limpar a chaminé do meu fogão a lenha. hehehe

E o teu "fogo de vida/afetivo", como está fluindo?


PS.: Dedico este ensaio a minha namorada Danielle. Ela que já teve que lavar várias vezes o cabelo e lavar muitas roupas usadas no sítio, devido ao cheiro de fumaça, hehehe. Também, uma bela e boa parceira de filosofadas ao pé do fogão a lenha.



Tercio Inacio












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